I.A.L., 30 anos , é um operário da construção civil que vive em Minas Gerais. Ele e mais 13 cidadãos, recrutados no estado e na Bahia, receberam uma boa oferta de emprego, com promessa de carteira assinada, salário de R$ 1.500, alimentação, alojamento e outros benefícios para trabalhar na obra de uma construtora de Belo Horizonte, em janeiro de 2015.
O combinado se mostrou uma farsa quando os homens, conduzidos em ônibus clandestinos para canteiros em cidades mineiras distintas, em vez da capital, foram confinados em alojamentos sujos e precários, mal equipados, com comida escassa, sem contato com parentes, sem contrato formal de trabalho e sem receber o salário acertado, já que tiveram descontados da remuneração as passagens, a alimentação e até o botijão de gás. Foram resgatados três meses depois, em Lagoa Santa (MG), numa fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Minas Gerais.
— Tal situação é considerada tráfico de pessoas. Há aliciamento, mediante fraude, que mais adiante se revela em falsas promessas. Eles enfrentam péssimas condições de trabalho, que ferem diretamente as garantias mínimas do ordenamento juslaboral, em condições de escravidão — explicou a pesquisadora Rayana Campos, de Belo Horizonte.
Se a Lei 13.344/2016, que atualiza a legislação para o tráfico de pessoas, já vigorasse, os envolvidos no aliciamento dos trabalhadores seriam mais facilmente enquadrados como traficantes, para submissão a trabalho análogo ao de escravo.
Antes da lei, que entrou em vigor em 21 de novembro, para uma possível acusação, eram necessárias inúmeras interpretações, remissões a tratados internacionais e equiparações de condutas penais. A acusação agora tornou-se mais rigorosa e sistematizada, facilitando a operação da Justiça, e mais abrangente, pois deixa de reconhecer o tráfico de pessoas apenas quando é para fins de exploração sexual.
— O caso é de tráfico de pessoas, que é agenciar ou aliciar, recrutar, transportar, […] por meio de fraude. Então, a lei pega todo mundo. São traficantes de pessoas — complementa o consultor legislativo do Senado Jayme Benjamin.
Muitos não percebem que sofreram crime
A defensora pública federal e coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da DPU, Vivian Santarém, explica que o crime de tráfico “é você extinguir a liberdade de uma pessoa, aproveitando-se de coação, fraude ou situação de vulnerabilidade daquela vítima para fins de exploração”.
— É restringir a liberdade do ser humano para explorá-lo, seja no trabalho, sexualmente ou de qualquer outro tipo — resume.
Pela natureza complexa e pouco visível do crime, é difícil apurar a ocorrência e calcular o número real de vitimados. Os casos são quase sempre subnotificados, segundo ela.
As vítimas costumam ser mulheres, travestis e transexuais, crianças e adolescentes, mas também são frequentes, especialmente no trabalho escravo, homens de 18 a 30 anos, quase sempre em condições de vulnerabilidade social e econômica.
— É um crime perverso, que viola direitos humanos inalienáveis: a liberdade, a integridade física e psicológica, a honra e a dignidade da vítima. Os fins de exploração sexual figuram como a principal atividade de tráfico humano, mas a exploração para o trabalho também registra números expressivos — diz.
De acordo com o Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas, com dados coletados em diversos órgãos de governo e sintetizados pelo Ministério da Justiça de 2011 a 2013, a última consolidação feita, foram 2.089 trabalhadores resgatados no Brasil em 2013, em operações do Ministério do Trabalho, de situações análogas à de escravidão, a exemplo de I.A.L.
O Disque 100, telefone para denúncias da Secretaria de Direitos Humanos, em 2013 registrou 309 vítimas de tráfico de pessoas: 135 mulheres, 49 homens e 125 sem distinção de gênero. Já os dados dos boletins de ocorrência das polícias estaduais indicam a existência de 113 vítimas de tráfico para trabalho escravo no país. Para a exploração sexual, há registros de 123 vítimas locais e 11 para o exterior. São Paulo e Minas Gerais lideram as estatísticas.
No mesmo ano, 62 brasileiros foram traficados para fora do país. Desse total, 21 cidadãos, a maioria homens (11), trabalharam em regime de escravidão (na China, em Bangladesh, entre outros). De 2005 a 2013, foram 160 registros de brasileiros em trabalho análogo ao de escravo em outros países, segundo o Ministério das Relações Exteriores.
Para exploração sexual no exterior, do total de 41 registros, em 2013, foram 36 mulheres e 5 pessoas de gênero não informado. A maior parte das mulheres vítimas de tráfico sexual foi resgatada da Suíça (17). De 2005 a 2013, o total de traficados para exploração sexual fora do país chegou a 382.
Proposta por CPI, lei amplia conceito, simplifica processo e aperfeiçoa investigação
Novo marco legal para o tráfico de pessoas, a Lei 13.344/2016 é resultante de projeto de lei da CPI do Tráfico de Pessoas, que funcionou no Senado em 2011 e 2012. O projeto (PLS 479/2012) buscou adequar a legislação brasileira ao Protocolo de Palermo, tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) editado em 2000, do qual o Brasil é signatário.
Para Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), que presidiu a CPI, o principal objetivo foi mudar a legislação para facilitar a identificação do crime.
— O tráfico de pessoas era mais invisível ainda porque nem a legislação brasileira o tipificava corretamente — explicou.
O Código Penal só tipificava o crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, tanto o interno quanto o internacional. Mas o sistema de Justiça já trabalhava para punir os outros crimes correlatos, como escravidão e tráfico de órgãos. A lei simplificou o processo.
— O que a lei fez: criou um artigo único sobre tráfico de pessoas que prevê diversas finalidades de exploração: sexual, do trabalho escravo, remoção de órgãos e tecidos, adoção ilegal — explicou a defensora pública Vivian Santarém.
O novo artigo do Código Penal diz que é crime de tráfico de pessoas, interno e internacional, “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso”, com o intuito de remove-lhe órgãos, submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo ou a qualquer tipo de servidão, para adoção ilegal ou exploração sexual.
A pena prevista é de quatro a oito anos de prisão, mais pagamento de multa. A punição é aumentada caso o crime seja cometido por funcionário público ou contra crianças, adolescentes e idosos. A penalidade também pode ser agravada quando a vítima é traficada para o exterior.
Inovações
O marco legal amplia o enfrentamento ao tráfico de pessoas trabalhando em três eixos: prevenção, proteção à vítima e repressão. A mudança mais significativa está na proteção, com a criação de uma política completa de assistência às vítimas.
— A lei prevê assistência jurídica, social, trabalho e emprego, saúde, acolhimento e abrigo provisório, prevenção à revitimização da pessoa e atendimento humanizado, nos moldes do que acontece com vítimas de estupro — diz Jayme Benjamin.
A subprocuradora-geral da República e coordenadora da 2ª Câmara Criminal do Ministério Público Federal (MPF), Luiza Frischeisen, destaca inovações para a melhoria da investigação e combate ao crime. Entre elas, a possibilidade de formação de equipes conjuntas de investigação — de agentes que trabalham com tráfico de pessoas dos outros países e Ministério Público e polícia brasileira — e dispositivos especiais para bloqueio de bens de quem está fazendo o tráfico, a alienação antecipada.
— A nova lei traz um conjunto de normas, não só normas penais. Está preocupada com a proteção à vítima, com as condições de investigação, de conseguir apreender o produto e bloquear o dinheiro usado para tráfico — analisou.
Mais poderes também foram concedidos à polícia e ao MPF para acessar dados, acrescentou Benjamin. O delegado não precisa mais de autorização judicial para requisitar das prestadoras de serviço de telefonia informações sobre a localização da vítima, ou de suspeito, de delito que estiver em curso.
Outra mudança, explica Vivian, é a concessão de residência permanente aos estrangeiros vítimas de tráfico de pessoas no Brasil, com extensão às famílias. Isso é importante para que os traficados testemunhem no processo penal. A DPU tem atuado muito em São Paulo com bolivianos explorados na indústria têxtil, e no Rio de Janeiro, com chineses em pastelarias. Ela também destacou a criação um banco de dados nacional, com unificação e tratamento melhorado das informações dos órgãos brasileiros que lidam com o problema (polícias federal, rodoviária, civis e militares, Itamaraty, Ministério do Trabalho, secretaria de mulheres e de direitos humanos, entre outros). Tal banco é fundamental para fomentar políticas públicas, ter noção do fenômeno no Brasil e criar medidas concretas de combate.
Ação articulada das esferas de governo e trabalho em rede são diretrizes para o combate
A Lei 13.344 também obriga a efetivação de campanhas socioeducativas e de conscientização, com mobilização de todos os níveis de governo e participação da sociedade civil.
— A nova lei torna obrigatórios e traz como diretrizes a ação articulada das diversas esferas de governo e o trabalho em rede como forma de combate. A rede é muito importante para o combate ao tráfico — diz Vivian.
Ela elogiou o trabalho de ONGs como o Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH), ligado à Igreja Católica e coordenado, no Distrito Federal, pela irmã Rosita Milesi.
Irmã Rosita diz que o crime de tráfico de pessoas é invisível, pouco divulgado e que a sociedade não é alertada adequadamente sobre sua existência.
Para ela, o que dificulta a notificação dos casos de tráfico, especialmente quando há exploração sexual, é a vergonha, ou a dificuldade de as pessoas se identificarem como vítimas. Aliás, há quem, em última análise, se ache culpado por ter aceitado um convite, pagado para obter um benefício e acabar numa situação de exploração, salientou.
Apesar do avanço considerável, na opinião de Vivian, a nova lei falha na questão da vulnerabilidade. Os vulneráveis social e economicamente — negros, moradores da periferia, pessoas com baixa escolaridade e baixa renda — são os mais aliciados. Segundo o Protocolo de Palermo, mesmo que a pessoa aceite ser submetida à situação de tráfico, o consentimento é irrelevante por ela ter sido aliciada numa situação vulnerável. Ou seja, pelo protocolo, o caso se enquadra como tráfico.
— A Lei 13.344 foi mais tímida nesse aspecto. Quase não menciona a situação de vulnerabilidade da vítima e, quando o faz, não fala sobre o consentimento da vítima. Nem sempre ela tem consciência de que foi submetida a tráfico — lamenta.
Agência Senado