Em entrevista ao CORREIO, o arcebispo de Salvador e primaz do Brasil Dom Murilo Krieger admite pedofilia na Bahia, defende o acolhimento dos gays na Igreja, mas condena a naturalização da homossexualidade.
Pelo diálogo e pela tolerância, mas também pelo fim do sincretismo. O arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, está na capital baiana há três anos, tempo em que maturou sua avaliação de que o sincretismo, traço cultural baiano símbolo da resistência histórica da repressão contra religiões de matrizes africanas, deve ficar no passado. “Eu não aceito, acho o sincretismo prejudicial para os dois lados”, disse.
Em entrevista na sua casa, em luxuoso condomínio na Federação, o arcebispo admitiu a existência de casos de pedofilia na igreja baiana, comentou o beijo gay na novela Amor à Vida e deixou clara que a posição do papa Francisco sobre a necessidade de a Igreja acolher os homossexuais não flexibiliza dogma que condena os gays. O líder religioso revelou que a Igreja Católica tem como meta seguir o que fizeram os evangélicos, e comprar tempo na TV para atingir a população que não vai aos cultos.
A Campanha da Fraternidade este ano fala do tráfico humano. Por que este tema?
É um problema mundial, uma das grandes fontes de recursos ilícitos, depois das drogas e das armas, e o Brasil infelizmente não está fora disso. Ouvimos continuamente sobre pessoas aprisionadas trabalhando como escravos, jovens aliciadas para o exterior com grandes promessas e acabam se submetendo à prostituição. A campanha quer acordar o Brasil de que existe um problema grave. Nós temos que conclamar a sociedade, porque se não houver uma consciência geral, o problema continuará.
Os católicos são 64% da população no Brasil, mas teve queda de 12% em 10 anos, enquanto os evangélicos chegaram a 22%, mas há 30 anos eram apenas 5%. Como voltar a crescer ?
É um dado histórico: uma terça parte de quem é batizado como católico não pratica a fé. Tem uma terça parte que é praticante, e outra terça parte que são os católicos ocasionais. O terço que foi batizado, mas nunca participou de nada fica presa fácil de qualquer proposta. O grande desafio é como atingir a parcela que não está sendo atingida. Levamos muito tempo para descobrir a importância dos meios de comunicação. Hoje, no mundo globalizado, você não atinge mais no contato direto todo mundo. É ilusão que tivemos durante muito tempo. Nossas igrejas cheias, o padre com uma palavra de autoridade julgava que tinha todo mundo nas mãos. E nossos irmãos de outras igrejas foram percebendo a força da comunicação. Uma grande alavanca para essas igrejas foram programas de TV, depois foram comprando emissoras porque é uma evangelização 24 horas. Então a Igreja procurou correr atrás do prejuízo. Temos que ficar atentos para não ficar cuidando das ovelhas gordinhas, que participam, que vivem, mas olhar a ovelha que, como Jesus disse, se extraviou, saiu do rebanho.
A igreja tem esse objetivo de disputar tempo em TV?
E internet. Essa é essencial. Porque é o mundo de hoje. As pessoas tendem a se fechar cada vez mais em prédios e condomínios. Não é mais possível o contato individual, ir lá, bater, oferecer alguma coisa, é muito difícil. Com uma rádio, uma TV, a internet, você entra em lugares onde não entraria.
O senhor chegou em Salvador há três anos. Há alguma peculiaridade na missão da igreja aqui?
Vejo dois grandes desafios. A cidade não cresceu, ela implodiu de repente. Em todos os problemas sociais não será fácil achar uma solução. Há falta de terrenos para construir uma igreja. Nas áreas pobres, você não consegue uma área legalizada. Não tem espaço para encontrar e acolher o povo. Outro grande desafio, eu diria que é a situação de pobreza e miséria. Salvador precisa descobrir que sua vocação é de serviço, turismo, culinária. O caminho é fazer com que o soteropolitano usufrua de tudo isso.
É difícil falar de valores, quando a mensagem que o jovens recebem mais facilmente vem das sexualizadas letras de pagode?
Tenho alertado para isso. A doutrina de Cristo é muito clara para o corpo humano. Fomos criados à imagem e semelhança de Deus, o corpo é um sacrário de Deus, um santuário. Infelizmente, a gente vê aqui o corpo como objeto de prazer, há uma idolatria do corpo, uma sensualidade incentivada. Mas quando o cristianismo começou, há 2 mil anos, não era diferente, o paganismo dominava. E os cristãos pregaram, anunciavam. É aquilo que Paulo escreve a Timóteo, que ele pregue a palavra, insista, oportuna ou inoportunamente. Temos que nos apresentar, quem aceitar, graças a Deus. Os que não aceitam um dia verão que perderam a oportunidade de se elevar como pessoas.
A canonização de Irmã Dulce ajudaria a aproximar o baiano da Igreja Católica?
O maior tributo da canonização vai ser ter o foco sobre uma pessoa que dedicou a vida pelo outro, pelos mais necessitados. Isso faz falta. Se você olhar, todos esses grupos que dependem de voluntários, que trabalham com crianças abandonadas, com adolescentes envolvidos com drogas, com idosos que não têm para onde ir, verá que cada vez diminuem mais os voluntários. Há pessoas que contribuem economicamente, mas nem sempre voluntariamente. Irmã Dulce era uma pessoa que não tinha grandes estudos, não era uma intelectual, de fazer palestras, nem tinha poder econômico. No entanto, o impacto da obra dela é gigante.
O papa Francisco pediu que temas polêmicos, como o aborto e casamento gay não fossem o foco das discussões católicas. Qual o objetivo?
Há pessoas que pegam um tema e fazem dele o objetivo de todas suas colocações. O papa quer dizer o seguinte: a Igreja tem 2 mil anos, tem um corpo doutrinário bem articulado, fundamentado na palavra de Deus. Todo mundo conhece a posição da Igreja sobre o aborto, não precisa ficar falando. Não é que não queira que se fale disso, mas também de outros valores que estão esquecidos. Por exemplo, vou falar todo dia que não se deve matar? Todo mundo já sabe que não se deve matar. Então, ele quer é mostrar a doutrina da Igreja de forma global, não pegar só um tema. Senão, parece que se resume a só isso.
O papa também disse que se deve sempre receber com amor os gays dentro da igreja. Como lidar com o dogma que condena usando a palavra do amor?
Existe na Igreja a doutrina e existem pessoas. Jesus esteve com ladrões, com Zaqueu, que depois se confessou ladrão, e Jesus ordenou que ele devolvesse quatro vezes o que roubou; e esteve com prostitutas, mas nunca passou a mão na cabeça e disse para elas ‘continue assim, está tudo bem’. Ao contrário. Quando encontrou a adúltera que tinha sido condenada ao apedrejamento, Jesus disse a famosa frase ‘quem não tiver pecado que atire a primeira pedra’. Todo mundo foi embora. Ele disse: ‘Nem eu te condeno, vai e não tornes a pecar’. Não disse ‘continue sua vida e está tudo bem’. Deu a ela possibilidade de fazer uma experiência da misericórdia de Jesus e começar uma nova vida. Se alguém que tem uma vida errada se apresentar diante de mim – errada digo do ponto de vista evangélico, dos mandamentos – eu não vou dizer para ela que está tudo bem. Vou acolher e dizer: ‘Meu filho, esse não é o caminho de Deus’. A Igreja não vai mudar de doutrina. Não haverá uma pastoral para homossexuais onde ‘está tudo bem’, seria falso, estaria traindo o evangelho. Digo a verdade para ajudar a libertá-los.
O combate à homofobia ganhou espaço, inclusive com representatividade em novelas, teve o beijo gay. Como a igreja católica se posiciona neste contexto contemporâneo?
Estamos em um mundo pluralista, em que há de tudo. Educar no passado era mais fácil porque a família formava 70% da cabeça do filho, e 30% era escola, amigos, algum meio de comunicação. Hoje, se a família conseguir formar 30% da cabeça, é um milagre. Então penso que temos que seguir a orientação de Paulo, “examinai tudo e guardai se for bom”. Não significa aceitar tudo. O pai tem uma missão mais difícil, porque essa não é a única coisa que vai contra os princípios católicos.
Com tem sido o diálogo com as religiões de matriz africana?
Uma coisa é o diálogo, que é sempre bom, porque é escutar o outro, suas razões e motivações, por que ele acredita nisso, por que ele segue tal ritual. Esse diálogo acontece geralmente de forma informal. Eu não aceito, acho prejudicial para os dois lados, o sincretismo. No português claro, é colocar várias doutrinas dentro do liquidificador e aquela massa disforme e inodora que sair vai ser usada por todos. Candomblé e as outras religiões de matrizes africanas têm sua doutrina, seus ensinamentos, seus ritos que nós pedimos ao católico que respeite, como queremos ser respeitados em nossas doutrinas, nossos valores. Nesse respeito mútuo, todo mundo enriquece. O que temos que combater é a violência por questão religiosa, de raça e outras coisas. Mas respeito não significa que é tudo uma coisa só, porque aí, quando um grupo perde sua identidade, perde aquilo que tem de mais importante.
Como explicar ao católico essa dualidade, a necessidade de ter suas compreensões com base nos dogmas católicos, mas saber respeitar o diferente?
A intolerância religiosa é muito negativa. Só pode dialogar com outro aquele que conhece bem a sua fé. Quando uma pessoa não conhece bem a sua fé, tende a se fechar nos seus dogmatismos e combate o outro. Só conseguem dialogar pessoas maduras, adultas, que estão conscientes de seus valores. Olhando a sociedade, especialmente aqui na Bahia, eu não sei se tem outro grupo religioso que seja tão tolerante quanto os católicos. Às vezes há casos isolados. O mal é quando se quer fazer uma mistura, que volto a dizer, é prejudicial.
Qual seu julgamento no caso da freira que recebeu a benção do candomblé no adro da Igreja do Bonfim, no dia do cortejo, e virou capa do CORREIO?
Não sei quem é essa freira, mas eu acho que aí… a própria igreja tem a sua benção, da santíssima trindade. No candomblé tem sua benção, de seus deuses. Eu não sei o que levou aquela religiosa buscar lá (a benção), eu não aconselharia a fazer. É aquilo que eu falo, a mistura é prejudicial.
Havia uma expectativa na nomeação do senhor como cardeal, por Salvador ser uma sede cardinalícias (em que os arcebispos tradicionalmente tornam-se cardeais), mas não veio a acontecer. Foi uma surpresa?
O papa está mudando muitos parâmetros na Igreja. Era tradição que algumas sedes fossem cardinalícias, mas não existe nenhum documento, é só uma tradição. E ele mudou, usou outro critério: pegou bispo do interior do Haiti, outro de um país africano, ele demonstrou que quer uma representabilidade mais universal. No fundo, o cardeal é um assessor mais direto dele. Se pede e se espera muito mais de quem é cardeal, e graças a Deus ele escolheu pessoas que tem condições de ajudar o papa melhor do que eu.
O papa falou da “vergonha” com a pedofilia dentro da igreja. O senhor já recebeu alguma denúncia aqui no Estado?
Há casos isolados. Não houve aquilo como aconteceu em países da Europa, em que havia quase uma cultura (da pedofilia). Aqui existe porque as pessoas que nós acolhemos no seminário são pessoas que vêm da sociedade, e trazendo todas as coisas boas, mas trazendo à vezes limitações. Então há a necessidade, e o papa tem insistido com nós, bispos, de cuidarmos muito do discernimento, para saber se tal pessoa tem condições. Mas tem pessoas que conseguem camuflar, tem outras que têm tendências que são escondidas, que se manifestam mais tarde. O que isso mostra é que temos que valorizar mais as família. Porque grande parte de pessoas assim trazem traumas que depois se revelam em comportamento. São pessoas que trazem graves deficiências de formação, da vida familiar. Temos que trabalhar pela santidade, pela qualidade de nossas famílias. Quanto melhor a família, melhores serão os padres, políticos, industriais, professores.
Os casos daqui foram investigados? Como se procedeu?
Hoje as pessoas têm menos medo de ir procurar a Justiça, e tem caso de padres que foram presos. No julgamento, o juiz é até mais severo, porque há o agravante: quem é padre está exercendo um ministério que desperta confiança, então é um abuso maior da confiança. E a Igreja pode ate ajudar no sentido de colocar um advogado, porque se alguém não colocar o próprio Estado se sente na obrigação de colocar, mas não no sentido de pedir para o juiz não condenar. Depois, existe também um denuncismo. O mundo das fofocas é muito forte, se espalha rápido. Há uma necessidade de ter muito cuidado e não acreditar na primeira notícia, porque infelizmente o coração humano é vingativo e às vezes as pessoas não se preocupam em roubar do outro o que cada um tem de mais precioso, que é o bom nome. Quando há denúncia, temos que ir atrás, averiguar. Se for comprovado, temos que ser os primeiros a denunciar em termos de Igreja e essa pessoa perde o estado clerical.
Sabe quantos casos houve na Bahia?
Não. Muitas vezes corre em segredo de Justiça não pelo padre, mas pela criança. Eu, aqui em Salvador, não tive, sei que houve no passado aqui, mas não saberia dizer números.
Fonte: Correio